sexta-feira, maio 04, 2007

Há dias em que a TV educa mesmo

No "debate da nação", hoje transmitido na RTP 1, Fernando Rosas deu este recadinho a Anacoreta Correia, para que ele o transmita a Paulo Portas. Há dias em que a televisão afinal educa - pena ser já pela noite dentro...

Ora, a frase: "o trabalho liberta", fez-me lembrar o que se diz por aí nos cemitérios: "levantem-se malandros, que o trabalho dá saúde!".

Mas o mais espantoso, foi Anacoreta Correia ter dito que o dito "o trabalho liberta" também se encontra em escritos de dioceses, como se isso não tivesse nada em comum com a ideia de Hitler, e Paulo Portas tivesse dito isso com outra intenção. Isso não me espanta nada!
Vejamos algumas coisas interessantes:
«Na Grécia arcaica, o trabalho era tido como degradante e não era objecto de valorização, dando-se importância a outras actividades. Nela encontram-se actividades, ofícios e tarefas, mas não “o trabalho” (p.43). É nas categorias que temos acesso ao “ponos, actividades penosas, exigindo um esforço e um contacto com os elementos materiais, um contacto degradante (...) cuja característica é poderem ser imputadas a qualquer um e que consistem na aplicação de uma forma a uma matéria” (pp.43-44). A hierarquia das actividades é feita na medida em que se depende de alguém, estando na base da escala o escravo e o téta (mercenário que aluga a sua força de trabalho e que pode ser contratado para realizar um qualquer trabalho). A seguir encontramos o artesão que dominam uma técnica, como a olaria, mas representam a degradação social porque trabalham para o povo. Ou seja, as actividades são desprezadas na medida que tem que que ser realizadas perante alguém (Méda, 1999). Na Grécia clássica, o trabalho é apenas realizado por escravos que não são considerados homens, dedicando-se os homens ao ócio – fazer política, etc. O ponos passa a ser exercido por agricultores e artesãos que têm que assegurar as condições mínimas de subsistência, e por forma a que as tarefas lhes ocupem o pensamento. O laço social, devido à dependência que provoca do ponto de vista económico e social tem um sentido negativo – o salário é visto como negativo, pois trabalhar por dinheiro significa servidão. A felicidade para eles também não passa por uma série ilimitada de recursos.

Até ao fim da Idade Média, a representação do trabalho permanece sem alterações significativas. Até aqui o que é notável é não ser o trabalho o núcleo das relações sociais. Contudo, "a divisão da sociedade em duas partes, uma submetida à necessidade de trabalhar e a outra vivendo do trabalho da primeira, prova o contrário. (...) Mas o trabalho não estrutura a sociedade no sentido em que não determina a ordem social” (Méda, 1999, p.52). Não obstante, é no período do Império Romano que se começa a dar a lenta transformação na forma como se preconiza o trabalho, à qual iremos aceder no fim da Idade Média. Nos primórdios da cristianização do Império Romano, o trabalho continuava a ser visto como uma punição, dado que o homem devia era consagrar a sua vida a Deus, e enquanto punição de Adão pelo seu pecado pode ler-se no Génesis (in Méda, 1999, p.53):

“o chão será maldito por tua causa. Será à força que tirarás todos os dias da tua vida o teu alimento, que produzirá espinhos e abrolhos, e terás para comer a erva dos campos. Será com o suor do teu rosto que comerás o pão, até que voltes à terra, da qual foste tomado; porque és pó e ao pó hás-de tornar”.

Aqui é importante ressalvar que o Génesis não é interpretado da mesma forma ao longo dos tempos, e enquanto nesta altura o acto divino passa pela palavra “Deus disse (...) e assim foi” (Méda, 1999, p.54), no fim da Idade Média, com a redescoberta dos textos gregos, e pela necessidade de introduzir normas de vida nos mosteiros, a Igreja e os padres vão fazer emergir uma nova forma de pensar o trabalho. Aqui, tem importante papel Santo Agostinho, que “expõe, durante os primeiros séculos da cristandade, a sua concepção do trabalho monástico e a sua interpretação da criação divina” (Méda, 1999, p.54), entrelaçando assim nos seus textos, o acto divino e o acto humano. O facto de o Génesis começar a ser interpretado como trabalho de Deus – Opus Dei – carrega consigo algumas consequências. Passa a existir a ideia de que Deus trabalha e passa a ver na actividade do artesão, depois da leitura dos textos gregos, a actividade mais próxima da criação – o que para os gregos não passava de uma imitação. Assim estão lançadas as bases para uma nova ideia do trabalho. O trabalho “labor” ou “opus” opõe-se ao “otium” que é agora sinónimo de preguiça (Méda, 1999, p.55). Começa a ser encarado como natural, pois é uma lei Natural e é através dele que se pode subsistir e exercer caridade. A partir daqui, Santo Agostinho (1948, in Méda 1999) distingue que há “profissões infames” – onde encontramos os ladrões, gladiadores e actores, “profissões pouco honrosas” – especialmente os negociantes, e “profissões honestas” – os artesãos e os camponeses. Estes últimos trabalhos, considera Santo Agostinho, que deixam a alma livre, dado que o trabalho manual permite “que o espírito permaneça inteiramente cupado com Deus” (Méda, 1999, p.57). A esta altura, o trabalho manual continuava a a ocupar um lugar importante, mas com São Bento tal altera-se, pois ele vê no trabalho manual um melhor remédio face ao ócio. Considera assim que o trabalho tanto para os monges como para os outros, liberta o espírito enquanto ocupa o corpo, sendo louvado pela penitência. Nesta altura o trabalho intelectual passa a designar-se opus, como o trabalho divino, tal como se fosse um seu semelhante, e labor o trabalho dos artesãos e camponeses. É a partir daqui que começa a ser valorizado o trabalho, contudo ainda não é aqui que se desenvolve o mercantilismo, pois esse afastava-se do principal que continuava a ser adorar a Deus. Sendo que os trabalhos que interessam ão os que transformam a matéria, tal como Deus (Méda, 1999).

A ideia de utilidade é introduzida por São Tomás no século XIII, como sendo a produção de coisas necessária à existência, e o lucro é concebido apenas como remuneração do trabalho, bem como o preço das coisas – mas sempre na justa medida, não tem que ver com as necessidades de quem vende, mas da utilidade. É a utilidade que justifica o trabalho e a sua remuneração. No século XVI o trabalho passa a deignar-se tripalium, que curiosamente era usado para designar um instrumento de três pés que era utilizado muitas das vezes para torturar os indivíduos. O trabalho passa assim a ser uma pena, e não mais a obra. O ganho individual à epóca continua a ser visto com maus olhos, e a ser condenado pela Igreja. O trabalho existe para garantir o pão para a boca e a roupa, mas não para acumular riqueza (Méda, 1999).

No século XVIII, começa a construir-se o trabalho como tempo, que permite aumentar a riqueza e que tem como fim uma mercadoria. Tal é visível em Smith (1991), para quem o trabalho é gasto de energia, pode ser quantificado em períodos divisíveis de tempo, e para quem o trabalho é instrumento de troca. A partir do século XIX o trabalho passa a ser visto como factor de produção, deixa de importar tanto o tempo que nele se gasta, e como ele deve ser remunerado em função desse tempo, e passa a importar o trabalho produtivo. E com essa nova distinção, surge também por parte de Malthus que se chame ao trabalho não produtivo porque não material, serviço. A partir daqui, os economistas reúnem sobre a categoria trabalho, todas as actividades que permitam exercício sobre objectos materias e cambiáveis, onde existe um valor acrescentado que é passível de ser visto e medido, ficando assim o artesanato e o trabalho do campo sob o mesmo tecto, apesar do diferente esforço que comportam. Mas isso acontece porque a esta definição de trabalho, que única coisa que interessa é a sua capacidade de gerar riqueza.

O trabalho passa assim, a ser visto como “símbolo da autonomia indvidual” (Méda, 1999, p.71), que permite ao indivíduo valer-se a si próprio através das suas faculdades, que lhe permitem alcançar o lugar que ele deseja na sociedade. Daqui até à alienação do homem pelo trabalho foi um passo.
O trabalho, que é “um processo que se desenvolve entre o homem e a natureza, no qual o homem por meio da sua acção medeia, regula e controla a troca orgânica e a sua própria natureza” (Marx, 1859, p.36), passa a ser um meio de expropriação da sua força de trabalho mas também da sua humanidade. É que, na lógica da produção capitalista, – do quanto mais for produzido melhor, mas em que quem produz pode possuir cada vez menos, acabando mais no domínio do capital – “a desvalorização do mundo humano cresce em relação directa com a valorização do mundo das coisas” (Marx, 1859, p.70). O trabalho passa a ser um meio de exclusão na exploração do uso do homem na sociedade capitalista – o trabalho é esvaziado da necessidade humana de agir e de transformar a realidade para o homem e alheado do homem, de tal forma que o trabalhador não tem qualquer controlo e gestão sobre o que produz e sobre o que dele é feito. A subjectividade do homem desaparece no momento em que, tornado desumano o trabalho humano, se torna desumano o homem que trabalha. Assim, reduzido o homem a «coisa» na medida das coisas produzidas, o capital e a classe que o tutela e nele tem interesses estabelecerão na base da exclusão/integração realizada os valores de norma que continuem a garantir a universalidade da expropriação, logo da exploração. A classe detentora dos meios de produção é forçada «a dar às suas ideias a forma da universalidade, a representá-las como as únicas racionais e universalmente válidas» (Marx, 1859, p.36), para que a classe explorada as aceite, como se incluíssem as suas necessidades e a resposta às suas necessidades. Torna-se evidente que a exploração é um dos modos de integrar o excluído cujo paradoxo se reduz ao facto de ser força de trabalho.» (Mealha, 2006).

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